As mães da fila: histórias das mulheres que entram nas cadeias

“Liberdade para todos nós” desenhado na poeira de uma janela da Penitenciária Central do Estado – Unidade de Progressão

Dizem que as penitenciárias ficam longe dos olhos das capitais por questões de segurança pública, principalmente para dotados de muito patrimônio, mas é possível acreditar que essa também seja uma estratégia de negligência, incúria, prioridade. Não é difícil constatar a realidade: tente entrar caminhando pela porta da frente de uma penitenciária para ver como o dinheiro do seu imposto é aplicado. Não te deixarão entrar. As grades atuam como zelo da pena aplicada, mas não há confiança nos cadeados.

Dizem também, em tom bem mais irônico, que essas muradas feudais completam propositalmente a paisagem das margens das rodovias como penitência extra: à pessoa privada de liberdade, consciente da movimentação ininterrupta e da sua incapacidade de deslocamento; e aos familiares, que esperam horas ao tempo e ao vento para aplicar um único abraço que possa descortinar a almejada paz.

“É possível julgar o grau de civilização de uma sociedade visitando as suas prisões”, teceu Dostoiévski em Crime e Castigo, no século XIX. Decerto algumas pessoas merecem mais civilidade, acreditam os agentes de Estado, ainda que essa assertiva não esteja inscrita em nenhum livro ou mural. Ao menos essas são as impressões relatadas diariamente ao Conselho da Comunidade da Comarca da Região Metropolitana de Curitiba em sua sede e nas inspeções que realiza semanalmente nas dez penitenciárias de Piraquara, Pinhais, São José dos Pinhais e Araucária por presos, familiares e egressos.

Um dos casos é de Miriam Costa, 39 anos. “Tomo um ônibus até o terminal de Pinhais, depois outro alimentador e por fim o Vila Macedo/Vila Militar. Uma passagem, mas três ônibus. Chegando em Piraquara existe uma dificuldade enorme no raio-X. Eles têm apenas um para atender as sete unidades. O tempo mínimo de espera é de duas horas, ainda que não tenha um único abrigo”, conta. Ela trabalha com panfletagem para comércios no bairro Novo Mundo, em Curitiba. Costuma cruzar o portão da Penitenciária Central do Estado – Unidade de Progressão (PCE-UP) pelas 10h e só sai em torno das 15h, a cada dois finais de semana, religiosamente. “Eu trabalho por dia, no sábado também. Não posso faltar ao trabalho para ir. Por isso mudaram o dia da minha visita para domingo. E é sempre essa mesma rotina”.

Em Piraquara, há duas esperas. Uma fila bate de frente com a cancela do complexo, onde fica o SOE, grupo de agentes armados que conta com simpatia mínima dos presos, e a outra se forma na entrada das penitenciárias. É comum ver muitas mulheres (mães e namoradas/esposas) vestidas com roupas muito simples e com grandes sacolas a tira colo. Para minimizar os efeitos do cárcere e da saudade, Miriam faz como as outras em dia de visita: leva um lanche reforçado para comer junto com o filho, geralmente bolo, refrigerante, salada de frutas ou pudim de leite, em movimento que deveria imitar um piquenique em família. As vezes o desfecho é inesperado e as mães voltam para casa com o lanche intacto ou deixam ele na unidade como reforço da penitência, espécie de pedágio. Não existe negociação para quem é mãe de preso. Não há cinza entre o preto e o branco.

“As visitas são muito sofridas. Tem peso duplo, né? Já tiveram piores, agora estão mais camaradas conosco. No começo todo mundo é estúpido, dificulta muito a nossa vida. Mas eu nunca tive grandes problemas. Passamos na máquina de raio-X, por uma revista básica. Mas temos que respeitar as determinações em relação ao cabelo, uso de legging, sutiã. Até mesmo o chinelo é examinado. Algumas vezes é deprimente. Somos mulheres, temos os nossos dias de menstruação. Já passei pela revista em que pedem para tirar tudo, é constrangedor. Mas quem ama o filho passa por qualquer coisa. Deixa a vergonha de lado, tudo de lado”, diz a mãe Leonice Marchi, de 48 anos, que trabalha em uma pizzaria em uma cidade distante mais de 500km de Curitiba. Ela não quis identificar o local porque sofreu uma tentativa de assassinato quando o filho de 24 anos foi preso.

Esse jovem mora na Penitenciária Central do Estado (PCE) há dois anos e atualmente trabalha na lavanderia. No último mês, foi campeão do torneio de futebol da cadeia. Segundo a mãe, já remiu mais de dez dias da pena com cursos. Ela conta os dias: em 2020, ele terá direito a progredir de regime para o semiaberto, quando a prisão é apenas da consciência, portanto cerca de 1.000 dias.

“Vendi meu carro, dei R$ 20 mil para um advogado. Meu filho mais velho foi inocentado e o outro foi condenado. Deixei tudo para trás quando fugi, até mesmo um poodle. Minha vida foi se destruindo, eu ganhava R$ 2 mil e agora pouco mais de R$ 800. E ainda tem a rotina das visitas, o sofrimento nas datas como Natal e Dia das Mães. Especialmente nessas datas, não temos vontade de fazer nada”, resume. A viagem para Curitiba demora quase dez horas. Ela deixa sua cidade às 20h de sábado e na segunda às 6h já está de volta ao batente.

Adriana de Souza, 37 anos, cabeleireira, outra mãe, conta a saída do filho de maneira diferente, em semanas: há dois anos, passa todas as segundas-feiras no Fórum de Execuções Penais para tirar um extrato da pena do jovem, e também na sede do Conselho da Comunidade para trocar uma ideia com a psicóloga Vera Silano.

“Nunca procurei uma psicóloga depois de tudo o que aconteceu, mas encontrei ajuda justamente onde achei que seria o lugar mais difícil, no Fórum, involuntariamente”, conta. “Desde a primeira semana dele no sistema, na PCE, entro no Fórum e pego a ficha atualizada. Vejo que está diminuindo. E tive ajuda providencial da Dra. Vera, da Dra. Isabel (Kugler Mendes, presidente do Conselho) e da Dra. Beth (Elizabete Subtil, diretora do órgão). Aqui nunca recebi um não. Me falaram do Conselho e desde então sou figurinha repetida aqui. Encontrei esperança nas respostas. Elas me falavam que estava tudo certo com ele, com a execução da pena. Nos outros lugares te fecham as portas, aqui você se sente acolhida para conversar”. Uma egressa que não quis se identificar citou a mesma impressão na última semana. “O Conselho é o único lugar em que há uma real tentativa de trabalhar em prol do preso. Nos outros lugares é ‘porta fechada e volta depois'”.

O filho está na Colônia Penal Agroindustrial (CPAI), no regime semiaberto, e deve sair em meados do ano que vem para o regime harmonizado (tornozeleira eletrônica). Está a espera da homologação de uma remição de 90 dias – se aprovada, acelerará o trâmite. Adriana de Souza nunca faltou em um encontro com o filho nesses dois anos. “Só tenho ele, meu marido e uma filha de 23 anos. Eles até foram em visitas, mas anda tudo muito difícil. Até para fazer a carteirinha de visitação. É muita humilhação, burocracia”, conta. Eles não vão mais a Piraquara. “Encontrei muita gente mal educada durante esses anos, gente que não tem coração. Na penitenciária não importa se você é rica ou pobre. Na fila de visita você não é ninguém. Não interessa o que você leva, se o ônibus atrasou, se você dormiu na fila para entrar mais cedo. Muitos funcionários humilham as pessoas. Começa na revista. Fui em quatro visitas na época em que tinha que tirar toda a roupa. Você não faz ideia do que é isso. É exposição, exposição, exposição”.

A revista íntima foi proibida no país em abril de 2016, ainda que agachamentos na frente do espelho aconteçam ilegalmente em algumas penitenciárias. Mais de 50% das mulheres ouvidas pelo Conselho da Comunidade ao longo dos últimos meses revelaram que passaram pelo mesmo vexame.

“Além do processo da visita, ainda tem as comidas que têm que voltar. Eles fazem picuinha por causa de comida. Para os presos é uma das poucas coisas que importam”, comenta Adriana. “Já cheguei a esperar das 2h30 até as 10h para entrar, você já entra cansada, estressada, esse já é um momento difícil na vida das mães. Já entrei bem e saí com dor de dente depois de ficar um dia inteiro na chuva. Também já saí de lá direto para um hospital porque passei o dia inteiro praticamente sem tomar água”.

Para a cabeleireira, o sofrimento imposto às mães na cancela se estende aos filhos custodiados. “Eles escondem o verdadeiro sofrimento. Sei que ele esconde de mim. Tem muita repressão lá dentro, altera o psicológico. Para conseguir estudar, por exemplo, ele teve que sair da cela com o nome de outro preso para alcançar o professor. Ele disse: ‘eu não sou fulano, mas preciso estudar’. O professor ficou com dó e aceitou. Em dois anos na PCE, ele conseguiu estudar um único mês”.

E o pior momento? “Natal de 2015”. Essa época do ano é marcada por fugas em todo o país. Uma delas ocorreu na PCE, justamente na cela do filho. Seis fugiram, mas ele optou pela permanência e ainda foi castigado com falta grave e isolamento. “Não vi ele nem no Natal e nem no Ano Novo. Você consegue imaginar o que é isso para uma mãe?”.

“Vamos tentando, vivendo”, diz Miriam Costa. Ela está doente, anda depressiva e, de quebra, ainda corre para provar a inocência do filho. Em parte, se culpa pela prisão ter ocorrido logo depois que pediu a ele que comprasse cigarro. “Ele entrou com 18 anos no sistema, acusado de um assalto no Sítio Cercado. Três caras roubaram uma tabacaria e um carro, e o abandonaram perto da minha casa. Nisso meu filho estava por ali. Ele viu um menor tirando a bateria do carro e foi ver o que era. Ele nem encostou no carro. Policiais disseram que a vítima o reconheceu e ele já foi preso. Pegaram o menor também. O carro foi deixado bem na frente de uma empresa, mas eles não nos cederam as imagens que provariam que meu filho não teve nada a ver com o roubo do carro. Ele foi condenado a oito anos. Nós ainda estamos apelando, o juiz não aceitou nenhuma das nossas testemunhas de defesa”, narra.

As mães da fila também carregam o peso das sacolas, embutidas, na maioria das vezes, de dificuldades econômicas e força de vontade. “Nas visitas, eu levo o lanche. Fora a sacola, que dá pelo menos R$ 400. Mês passado levei um rádio. Só. Era o que dava. Meu filho trabalhava registrado, ajudava a nos manter. Eu não posso. Tenho uma filha de oito anos que mudou totalmente o comportamento na escola, tem problemas intestinais. Tenho que cuidar dela”, conta Miriam. As sacolas são complementos mensais não obrigatórios que os familiares podem levar para as penitenciárias, autorizadas pelas direções, que compreendem kits de higiene, vestuário e alimentação. Porém, muitas famílias não conseguem entregar os pedidos mensalmente. A sacola também sinaliza poder e pode se associar a uma dívida, o que compromete indubitavelmente a reintegração pacífica do indivíduo.

De acordo com Isabel Kugler Mendes, presidente do Conselho da Comunidade, os kits, cada vez maiores, penalizam as famílias. “Uma compra completa custa mais de R$ 500. As famílias, geralmente muito humildes, fazem de tudo para levar alguma coisa. Se elas não levam, as vezes as facções levam. É uma relação de poder que o Estado permite que aconteça debaixo dos seus olhos”. A advogada já teve um filho preso no sistema fechado e acompanhou essas crônicas das visitas duas vezes por semana, às quartas como advogada e aos sábados como mãe. “Foi nas visitas que eu me aproximei desse mundo, que eu tive a sensação de que eu deveria entrar nas unidades e conversar com os presos. Porque são inúmeras as denúncias”, lembra.

O vice-diretor de uma unidade em Piraquara tem essa mesma impressão. “Curitiba quer o aeroporto, mas ele é de São José dos Pinhais. Curitiba quer o autódromo, mas ele é de Pinhais. Agora, Curitiba não quer as penitenciárias, garante que elas são das cidades da Região Metropolitana”. 

Um dia antes das mães entrarem nas penitenciárias, os presos jogam água e sabão pelo chão atrás de criar um tapete vermelho. Na madrugada, as filas começam a se formar e a expectativa ganha coro. Todas as semanas do ano tem o mesmo roteiro, longe dos olhos da capital.

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